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CISNE: Encontro Imediático com Teresa Villaverde
CISNE: “Mergulhar, nas calmas, numa piscina do nosso futuro sangue”
…do nosso futuro sangue”. Depois de dois filmes das profundezas – Mutantes (1998) e Transe (2006) – Teresa Villaverde emerge com Cisne, a sua sexta longa-metragem. Mas atenção, que são turvas as águas e haverá sempre lodo no cais
Ana Margarida de Carvalho
16:51 Quinta feira, 1 de Set de 2011
Há rótulos tão pegajosos como moscas numa tarde de Verão. E que, mesmo depois de enxotadas, voltam, e pousam, e insistem, teimam, repisam e irritam. Não é que a nova longa-metragem de Teresa Villaverde, Cisne (estreia-se quinta, dia 8, depois de passar pelo Festival de Veneza, dia 6) não detenha alguma atenção sobre elas, as moscas, a dada altura do filme, mas neste caso, estes insectos inoportunos vêm mais a propósito das ideias que depois de feitas dificilmente se desfazem. Por isso fica aqui, uma espécie de post-it logo à cabeça desta entrevista, para fixar, de vez, a advertência que a realizadora passa o tempo a fazer. Não, Vera (Beatriz Batarda), a protagonista do filme, não é uma fadista. Canta descalça, com voz de fadista (Ana Moura), às vezes fecha os olhos como as fadistas – mas, repete Teresa, “Vera não é fadista”. Pode ser noctívaga, insone, padecer de saudades, nostalgias, amores emaranhados e chorar lágrimas de sangue mas “não é fadista”. Portanto, ficamos entendidos, albarde-se a personagem à vontade do dono, e “Vera não é fadista”. Nem há fado nem cisne, um pássaro presente nas mitologias e cosmologias de todo o mundo, carregado de simbologias, o grande pato branco, tão lunar quanto feminino – mas mudo. Aliás, num filme povoado por animais, perdizes, galinhas, um pavão, caranguejos, um coelho, uma cadelinha bebé, o único que não comparece é o dá título ao filme.
VISÃO: O seu filme chama-se Cisne mas só fala de patinhos feios: personagens perdidas, errantes e solitárias, filhos rejeitados pelas mães, uma mulher com nanismo…
TERESA VILLAVERDE: É curioso, mas não vejo nada assim. Talvez possa concordar que todos são um pouco solitários, mas associo mais essa solidão à própria liberdade de que precisam. E pessoas errantes podem ser cisnes. Não sabemos como acaba a história do filho com a mãe. A mulher pequena é uma anã, é bonita e sente-se bem no seu corpo.
Já disse que Cisne é um filme “sobre amor, justiça e música” – só que o amor é inexequível ou uma perversidade, a justiça é sangrenta e praticada pelas próprias mãos e a música não redime nem salva… Parece que nada funciona, nem os conceitos que são, à partida, benignos…
Os amores neste filme são amores difíceis, não são inexequíveis. São amores que ficam inteiros mesmo com imensas dificuldades. Amor perverso, não sei o que é, presumo que se esteja a referir à pedofilia, mas isso não tem nada que ver com amor, acho mais oposto ao amor do que o ódio, o ódio é que pode, por momentos, ser uma espécie de amor, talvez. A pedofilia está sempre ligada à destruição, e o amor (mesmo o inexequível), vejo-o sempre ligado à construção. Há de facto um momento de justiça pelas próprias mãos, embora não seja óbvio se a criança se está a vingar a si ou às outras crianças. Não muda muito, mas muda alguma coisa. É um momento de libertação assistido por um cisne mudo, como são mudos todos os cisnes.
Quanto à música, ouvi-la ou compô-la é muito diferente do que tocá-la ou, neste caso, cantá-la em público. A apresentação em público é muitas vezes uma fonte de angústia. Há artistas que sentem que criam enquanto se apresentam em público, normalmente os grandes intérpretes, mas um compositor, uma cantora que componha, pode não sentir nada disso, e sentir um enorme vazio. Mas isso não tem que ver com a música em si. Há até, claro, casos muito conhecidos de enormes intérpretes que não viam a utilidade da apresentação em público, ao ponto de se recusarem e só gravarem em estúdio. Eu penso que também existem momentos complexos na vida em que um criador possa pensar que é possível atingir uma espécie de paz que dê a ilusão de que não é preciso criar mais. Imagino que seja sempre uma ilusão. Imagino que um criador não saiba parar de criar.
Então, se Vera [a não fadista] não é o cisne deste filme, quem é?
Eu acho que nenhuma das personagens é o cisne. O cisne é uma testemunha muda do que se passa com eles. É um campo magnético impresso numa parede. É perto do cisne que a criança age e é também perto do cisne que a Vera pausa e talvez decida sobre o que fazer com ela própria e com a criança.
O filme abre com uma cena violentíssima: pássaros a serem largados por mãos infantis para serem abatidos logo a seguir. Isto causa um desconforto, como se qualquer daquelas personagens tão frágeis que vagueiam por ali também estivessem prestes a ser abatidas a qualquer momento. A ideia era cria-se um ambiente de violência latente?
Sim, é um pouco como se fosse o manto do mundo. Todos os terrenos que pisamos, foram já pisados por outros. Penso muito nessas coisas. Sabe, acho que é muito importante ter tempo, quando só corremos esquecemo-nos de imensas coisas. Achei importante começar o filme assim. Gosto que a primeira frase que se ouve seja “está viva”, é um rapaz que diz referindo-se a uma perdiz que não morreu com o tiro que a apanhou. O rapaz também participa na morte dos pássaros, mas naquele momento esquece-se disso, e fica do lado do pássaro.
À primeira vista, Cisne parece ter uma temática mais adulta, depois de os Mutantes (sobre miúdos abandonados) e de Transe (sobre o tráfico de uma rapariga), mas continua muito presa ao imaginário das crianças e a ecos das suas anteriores obras. Além de dedicar o filme “às crianças”, Cisne está povoado de um referencial infantil. Até os adultos parece que não cresceram, são imaturos, não aprenderam as coisas da vida, a amar-se, etc…
Não tenho ainda distância suficiente para analisar o conjunto dos filmes que já fiz, e não sou muito (nada) de rever os filmes, mas claro que reparo que alguns temas são recorrentes, sou eu. Acho que as coisas vão mudando naturalmente. Estou já bastante embrenhada na escrita do próximo e sinto uma grande diferença, por exemplo, no tratamento das crianças. Mas voltando a este filme e aos personagens, não os vejo imaturos, escolheram caminhos não comuns, talvez. Não estão encarreirados no sentido comum de projectar um trilho e ir por ele a fora, e não me parece que sintam a necessidade de andar lado a lado com um grupo definido de pessoas, mas é uma escolha, não é o acaso. Acho que hoje há muito uma coisa que para mim é estranha que tem que ver com os amores úteis, as paixões úteis que nos fazem bem e que nos resolvem coisas. Nesse aspecto sou muito Camiliana, não vejo nada o mundo assim, e fascinam-me imenso as pessoas que mergulham nos amores impossíveis, ou possíveis mas dificílimos de viver. A piscina cheia do nosso futuro sangue e mergulhamos nas calmas. Adoro isso.
Mas o casal, a não fadista Vera e o violocelista Sam só se consegue amar à distância, o que já si é estranho, mas ainda mais estranho é comunicarem por escrito. Já ninguém escreve cartas, e usa o correio tradicional…
… pero que las hay, las hay. Uma carta em papel é uma coisa lindíssima. Acredito nessa necessidade de escrever todos os dias, escrever pode viciar. Ela fica desnorteada por não lhe estar a escrever. Ele foi para casa dela, e ela com isso perdeu o norte. E ele também porque não a lê. Nem toda a gente pode viver de uma forma simples ou clara.
Escuta-se música brasileira (Chico, Caetano, Caymi) ou a cabo-verdiana mas vêm-nos à cabeça o fado. Interessa-lhe este universo? O cliché da fadista descalça, noctívaga, cheia de amores emaranhados, nostalgias e saudade?
Também tem muito John Cage, e muitos russos, Shostakovich e mais. Fado é que não tem. Gosto muito de fado, mas a Vera não é fadista. Quem deu a voz à Vera, sim, porque a voz da Vera quando canta é da Ana Moura. As canções são do Chico Buarque, mas não são nem fado nem samba. A Nina que o Chico Buarque fez para o filme, fala de uma mulher russa que escreve cartas a partir de Moscovo para alguém que está num país distante. É a Vera a cantar como se fosse o Sam. Foi ideia do Chico fazer assim, primeiro achei que não podia ser, mas depois vi que ele tinha razão e que era muito mais bonito assim, ela a cantar como se fosse ele.
Chico Buarque é recorrente nos seus filmes…
Eu ainda hoje fico muitas vezes embasbacada com o que ele faz com as palavras, com o que consegue pôr numa canção. Como brinca. Ele diz que nunca mudou uma nota nas canções em que só fez a letra, às vezes não se acredita. Como é que pode ser possível, mas é. Ele é incrível, temos imensa sorte por partilhar a mesma língua.
Para além da música, há contrastes visuais muito fortes, de fotografia e de decores… Muita noite e muito dia. Os ambientes sofisticados do hotel, dos bastidores e da casa da [não] fadista e o barracão surrealista da margem sul. Tanto Tejo e tanta aridez na lezíria…
Acho esses contrastes muito importantes. Gosto que uma pessoa possa estar de manhã num hotel de 5 estrelas em Lisboa e à tarde num barracão no meio do nada. É que o barracão e o hotel são perto, é triste ficar só de um dos lados quando se é livre de andar de um lado para o outro. Ela, a Vera, tem mais mobilidade porque tem dinheiro, pode escolher. O Pablo anda com o carro caro de um dos mundos até ao outro, vai de um lado para o outro num instante. A casa dela, é uma casa enterrada na terra pelo Eduardo Souto Moura, confunde-se com a paisagem.
Neste filme mistura uma actriz consagrada (Beatriz Batarda), com não actores ou pouco experientes como Miguel Nunes, de Morangos com Açúcar. É difícil conciliar registos?
Não é uma coisa nova para mim misturar actores mais experientes com outros que o são menos ou até sem experiência nenhuma. A Beatriz é uma actriz extraordinária, é muito fácil e um prazer, trabalhar com ela. O Miguel Nunes é um actor que veio para ficar, tenho a certeza. Foi tudo bom e fácil.
Porque agradece, nos créditos finais, “o empurrão solidário” de José Saramago Pilar del Rio?
Ser cineasta em Portugal é uma profissão de risco grande e às vezes não há o que pôr na mesa, e espera-se um tempo infinito até se poder trabalhar. Foi por causa de uma conversa que tive com o José Saramago e com a Pilar que decidi fazer os impossíveis e abrir a minha própria produtora. Percebi quando saí de casa deles que era o momento de fazer isso. Ainda pude escrever ao José Saramago a contar o que tinha feito e que o empurrão tinha sido deles.
Uma vez Caetano Veloso revelou que a Teresa lhe teria dito que não era possível viver sem música, que se podia dispensar até a literatura, mas nunca a música… É uma afirmação surpreendente sendo a Teresa realizadora…
Penso que não foi bem isso que eu disse. Por acaso também vi o programa em que o Caetano Veloso conta essa conversa, mas claro que no fundo, no fundo não acho nada disso, nem ele, de certeza. Mas de qualquer forma o que estávamos a dizer era que o que faria mais falta era a música, caso se parasse com a produção de tudo, mas ficava-se com o feito até agora. Não sei viver sem o cinema, não consigo imaginar.
O que contrapõe a estas novas correntes que falam em políticas culturais de apoio a monumentos e abandono das artes vivas?
Acho muito triste esse tipo de raciocínio. O dia de Portugal é o dia de Camões, honra-se o Camões, poeta maior, mas os poetas de hoje que morram de fome. É tão obviamente importante, sobretudo até em tempos de crise, o trabalho dos artistas que é estranho esta forma que as vezes o poder tem de nos olhar. Espero que os meus colegas no cinema e também nas outras artes, não se deixem abater. Havemos de conseguir sair disto. Temos que continuar a criar, a pensar em voz alta, a ajudar à discussão e reflexão sobre tudo o que tem que ver com a vida de todos. Como artista não sei parar, mas se calhar só não paro se me ajudarem de outros países. Não seria a primeira vez. Mas para quem está a começar agora, é muito difícil a ajuda do estrangeiro. É grave.
“Os ricos que paguem a crise” sempre foi um slogan da esquerda, agora são os próprios a defender essa ideia. A esquerda precisa de mudar de bandeiras nestes revirares de tabuleiros?
Nunca me revi nesse slogan, sempre me pareceu, ‘os ricos que paguem a crise que eu vou ali e já venho’. Não percebo isso. Não me parece que os ricos queiram pagar a crise, penso que não querem ser odiados, e que não lhes interessa um mundo só de pobres. Sabem que tem que haver os que não são nem ricos nem pobres, para lhes comprar as coisas. Os sacrifícios dos ricos não são sequer comparáveis com os do resto das pessoas. Preocupo-me muito com os velhos, não sei o que lhes vai acontecer. Penso que os novos vão emigrar. É estranho termos chegado aqui. Há toneladas de coisas para a esquerda defender. Tenho muita pena que a esquerda portuguesa não se entenda seriamente.
Pessoalmente assumiu sempre posições de esquerda, mas cinematograficamente mostra sempre uma visão pessimista sobre a humanidade, e sobre o que os homens são capazes de fazer uns aos outros… O que nos pode salvar?
Não sei. Acho que o melhor é irmo-nos salvando a par e passo. Vivemos tempos complexos. Há muita gente confusa sem saber o que fazer e há muita gente aflita que não sabe o que vai ser o amanhã. O mundo está a viver um abanão. A situação da Europa é muito má, a situação africana é bem pior. E num instante se dá a volta ao mundo de avião. Enfim…
Este é um filme falsamente optimista. Ou seja, há uma imagem de redenção final, de um sono de tranquilidade com uma cadelinha num colo, mas pode ser aparente ou efémero porque depois há os olhos da criança a mostrar que o trauma ficou e ficará sempre lá…
Não sabemos o que será o futuro daquela gente, mas aquele momento é um momento de paz. Um machado ali é para cortar lenha.
Mas essas pessoas parecem tão engaioladas ou condenadas como os tantos pássaros que enchem o filme…
Talvez, mas têm a chave da porta da gaiola e os pássaros não.
Filed under: 2011, CARVALHO, Ana Margarida de, Final Cut - Visão | Leave a comment »
Vale a pena reparar com atenção, e alguma disponibilidade mental, na estreia comercial de Mistérios de Lisboa nas salas dos EUA (ocorrida na passada sexta-feira). De facto, o filme de Raúl Ruiz, produzido por Paulo Branco, pode estar a conseguir uma proeza singular para o cinema português: a de ser um sólido fenómeno de prestígio, não apenas nos circuitos de festivais, mas também através de uma presença muito consistente no mercado americano, tradicionalmente difícil para a maioria dos títulos europeus.
Repare-se: não se trata de favorecer qualquer tipo de triunfalismo nacionalista, banal recurso de muita informação “cultural” que passa nas televisões (afinal de contas, temos telejornais capazes de se alhear olimpicamente de acontecimentos deste género, enquanto repetem até à exaustão o trailer de Harry Potter…). Nem se pretende omitir o facto de se tratar de um lançamento de escala reduzida, para circuitos “especializados”. Acontece que não é comum podermos encontrar uma produção de raiz portuguesa a ter o impacto que Mistérios de Lisboa está a construir no espaço americano, surgindo nos destaques semanais de jornais como o New York Times e o Village Voice, ou ainda conseguindo ser o filme mais cotado da semana para os 16 críticos do site IndieWire (indiewire.com).
O reconhecimento de Mistérios de Lisboa excede o âmbito especificamente cinematográfico, remetendo-nos também para as questões mais gerais da difusão cultural portuguesa. Por exemplo, no prestigiado e influente Salon.com, o crítico Andrew O’Hehir, elegendo-o como “filme da semana”, lamenta não ter encontrado disponível nenhuma tradução inglesa do livro de Camilo Castelo Branco em que se baseia.
Na prática, tudo isto abre uma hipótese muito linear que vale a pena colocar em termos estratégicos, isto é, inequivocamente políticos. A saber: nunca tivemos nenhum filme português com tantas potencialidades para ser trabalhado de modo a conseguir chegar a uma nomeação para o Óscar de Melhor Filme Estrangeiro. Que se vai fazer face a tal oportunidade?.
Não ignoro que está a decorrer uma petição pública para que um outro filme (José e Pilar) seja escolhido para tal efeito. Escusado será dizer que não se trata de discutir a opinião dos respectivos signatários, muito menos a legitimidade do seu gesto, ainda que, por princípio (muito anterior à existência de José e Pilar), considere errado assumir qualquer opção de política cultural a partir de uma petição pública (mesmo que, no final, essa opção e o sentido da petição acabem por coincidir).
in http://www.dn.pt/inicio/opiniao/interior.aspx?content_id=1947494&seccao=Jo%E3o%20Lopes
Filed under: 2011, Diário de Notícias, LOPES, João | Leave a comment »
“Tenho que reparar uma falta: confesso que não fui ver às salas José e Pilar, o documentário que Miguel Gonçalves Mendes dedicou aos últimos anos de vida de José Saramago com a sua mulher, Pilar del Río.
Mas a saída do filme em DVD dá-me o pretexto para reparar essa falta e recomendá-lo a toda a gente. Eu sei que a visão de um filme em casa não substitui a visão na sala (é como ver um quadro ou a sua reprodução), mas dá para perceber o extraordinário trabalho que Miguel Mendes nos legou. E para fazer algumas chamadas de atenção.
A PRIMEIRA: em 2010 foram exibidos nas salas 7 documentários portugueses, contra 15 longas-metragens de ficção, o que não deixa de ser um fenómeno inédito e de louvar. A segunda é que Miguel Mendes só à terceira tentativa é que conseguiu ver aprovado o seu projecto pelos júris do ICA, e só depois de as produtoras de Almodóvar e de Fernando Meirelles (o realizador de Ensaio sobre a Cegueira) terem decidido investir no filme. A terceira é que José e Pilar fez até agora cerca de 22.000 espectadores só em Portugal (além de ter sido um êxito em Espanha e no Brasil), ou seja, mais do que a média dos outros 15 filmes de ficção nacionais (3 dos quais tiveram menos de mil espectadores).
Aquarta é que Miguel Mendes passou três anos com o casal, entre idas e vindas a Lanzarote e viagens pelo mundo a acompanhar o Nobel e a sua mulher – o que foi fundamental para que ambos se habituassem à sua presença, e para que, em vez da tentação da pose (quando não há essa relação de confiança), ou, pelo contrário, do voyeurismo (quando o realizador é um intruso), o filme nos mostre o lado mais espontâneo de um e outro e se tenha tornado um dos mais preciosos documentos sobre os últimos anos de um grande criador que alguma vez alguém fez. Ao seu lado, o filme que Wim Wenders fez sobre Nick Ray é um objecto obsceno.
MIGUEL Mendes, que tem 33 anos e se prepara para filmar O Evangelho Segundo Jesus Cristo, ajudou-nos a perceber e admirar Saramago e revela-nos algumas coisas importantes: uma, é a fantástica história de amor entre José e Pilar, que desafia a idade e as idades; a segunda, é a extraordinária mulher que é Pilar, uma mulher de grandes convicções e com uma força invulgar, cuja relação com Saramago contribuiu também para reavivar o sonho de uma grande Ibéria, onde caberiam todos os povos da península, sem hegemonias nem submissões, e que, desde o século XV, alimentou a imaginação das coroas peninsulares, de D. João II a Carlos V.
JOSÉ e Pilar é, a todos os títulos, um filme admirável e um contributo decisivo, graças ao que revela da grandeza de um e outro, para revelar a nossa óbvia vocação ibérica e aproximar finalmente os povos de Espanha e de Portugal, sem rancores nem ressentimentos. Seria o melhor tributo que poderíamos prestar a estes dois personagens admiráveis que Miguel Mendes nos ajudou a conhecer ou descobrir.”
in http://sol.sapo.pt/inicio/Opiniao/interior.aspx?content_id=24321&opiniao=Opini%E3o
Filed under: 2011, O Sol, VASCONCELOS, António-Pedro (1939-) | Leave a comment »
“Iniciamos hoje o blogue de homenagem a Rodrigues da Silva, onde publicaremos os seus textos sobre cinema e não só.
6 de Jan de 2010”
Ler mais: http://aeiou.visao.pt/e-mesmo-que-assim-nao-fosse=s25247#ixzz1TdLruQng
http://aeiou.visao.pt/e-mesmo-que-assim-nao-fosse=s25247
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Castelo de Vide, Novo México
“Estrada de Palha”, um filme de resistência em estreia mundial no Curtas Vila do Conde
10.07.2011 – Jorge Mourinha, em Vila do Conde
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“Estrada de Palha” é filme de resistência, western-chispalhada sonorizado na perfeição pela música do Legendary Tigerman e Rita Redshoes.
“Western transmontano? Não me lixes!”, comentava amigo a propósito da ideia de um western português cujo herói é um pastor de montanha emigrado, que regressa ao Portugal sem lei do princípio do século XX para vingar a morte do irmão.
É precisamente aí que reside a corda bamba em que Rodrigo Areias decidiu equilibrar a sua segunda longa-metragem, “Estrada de Palha”, apresentada em estreia mundial ontem à noite, em tempo de abertura do Curtas Vila do Conde 2011. Um pouco como Kelly Reichardt em “O Atalho” (actualmente em exibição), mas de modo mais paisagístico, menos austero, Areias utiliza as coordenadas do género para fazer outra coisa que não seja forçosamente aquilo que as pessoas esperam. No caso, adaptar o ensaio de Henry David Thoreau “Desobediência Civil” e mostrar como as palavras escritas em 1848 pelo pensador americano sobre a cidadania enquanto dever de resistência à injustiça continuam actuais.
Isto não terá caido forçosamente bem em Vila do Conde, numa sessão esgotadíssima que começou com atraso, já passava da meia-noite, e que estaria provavelmente à espera de algo mais “levezinho”, menos conceptual, mais lúdico do que o que Rodrigo Areias apresentou. A presença de Paulo “Legendary Tigerman” Furtado e Rita Redshoes, para interpretarem ao vivo a maravilhosa banda-sonora que compuseram, ajudou certamente à electricidade que se vivia. Mas também acabou por exacerbar as forças e as fraquezas de um filme sedutor, cinéfilo até à quinta casa, que nunca se esgota na mera citação ou no pastiche de cineastas maiores, e que procura realmente construir um discurso próprio, estético, social, político.
Houve, por isso, uns quantos desistentes durante a sessão, algum desconforto e não temos certeza que os resistentes tenham abarcado tudo o que ali se jogava; na sua curta apresentação, o realizador fez questão de recusar o choradinho do cineasta sem dinheiro, de falar da resistência à resignação de nunca haver dinheiro para nada. E “Estrada de Palha” é um filme de resistência por trás da sua aparência de western derivativo, com a sua personagem principal a regressar de uma longa ausência para descobrir um país diferente do que deixou, literalmente entregue aos bichos – o que cai que nem ginjas no Portugal de hoje, ao mesmo tempo que o seu lado assumidamente rural remete para a emigração.
Nada disto invalida que “Estrada de Palha” seja tão fascinante como desequilibrado. O problema principal reside num argumento que reduz as personagens secundárias a cifras sem explicação ou arquétipos sem espessura, e que acelera inesperadamente em correria louca em direcção a um final anti-climáctico, quase negando o ritmo “a trote” e a saborosa estrutura em episódios. Contra isso há um trabalho notável, cuidadíssimo, de imagem e ambientação, e uma fabulosa interpretação de Vítor Correia, que arca com o filme todo aos ombros em tom de grande herói dos westerns-spaghetti.
E não é tanto de Ennio Morricone que se deve falar na extraordinária banda-sonora, apesar da piscadela de olho pontual; mais do paisagismo desértico e da sábia gestão de silêncios e sons de Ry Cooder, impecavelmente reproduzida em palco por Paulo Furtado e Rita Redshoes. Não tanto “Paris, Texas” como “Castelo de Vide, Novo México”.É exemplar daquilo que Rodrigo Areias quis fazer – um objecto estilizado, resistente, carta fora do baralho num país onde cinema continua a ser dividido maniqueisticamente como “telefilme ampliado” ou “umbiguismo autoral”.
“Estrada de Palha” não é uma coisa nem outra: não é um western-chispalhada, mas é um filme que ousa ser diferente – e isso merece respeito. A ver como será a reacção quando chegar a sala, mais para o fim do ano.
in http://ipsilon.publico.pt/Cinema/texto.aspx?id=289339
Filed under: 2011, Ipsilon - Supl. Público, MOURINHA, Jorge | Leave a comment »
Durante o Fim, de João Trabulo
Durante o Fim: ESCAVAR RUI CHAFES
Durante o Fim, de João Trabulo, pode ser visto, antes de mais, como um prolongamento da obra de Rui Chafes ou algo que a complementa de forma relativamente eficaz. Serve de veículo entre o trabalho de escultor e um público. A arte como intermédio da própria arte.
Manuel Halpern
13:32 Quarta feira, 29 de Jun de 2011
Durante o Fim, de João Trabulo, pode ser visto, antes de mais, como um prolongamento da obra de Rui Chafes ou algo que a complementa de forma relativamente eficaz. Serve de veículo entre o trabalho de escultor e um público. A arte como intermédio da própria arte. Não é que o trabalho artístico precise de legendas, mas este aconchegamento fílmico torna-nos mais próximos da sua beleza e eventualmente da sua essência. Do escultor e do seu discurso. Há um entendimento latente entre João Trabulo e Rui Chafes. Mas o jogo não se dá ao mesmo nível. O filme não foi uma encomenda, mas antes uma opção do cineasta que quis ir ao encontro do que admirava, porventura na tentativa de encontra pistas para o desvendar. Há assim uma nobre posição de humildade do realizador, que se submete por respeito ao universo do escultor, recusando, à partida, qualquer espécie de protagonismo ou toque de personalidade que não sirva o propósito máximo de mostrar Rui Chafes. De certa forma, este não é apenas um filme sobre Rui Chafes, mas um filme do próprio Rui Chafes.
Contudo, conhecendo a ainda curta obra de João Trabulo, apercebemo-nos de que há aqui uma coincidência formal, que não será certamente por acaso. Ou seja, este fascínio por Rui Chafes conjuga-se na personalidade fílmica do próprio Trabulo. Percebe-se bem as semelhanças, o estilo desenhado, sempre sóbrio e contemplativo, se revermos, por exemplo, Sombras – Um Filme Sonâmbulo, que fez a partir de Teixeira de Pascoaes. Mas mesmo em relação a Sem Companhia, que talvez seja a sua melhor obra enquanto realizador, tem pelo menos em comum essa sobriedade e a opção por planos fixos. Só que se em Sem Companhia a solução vinha do constrangimento espacial, em é uma opção estética clara.
O universo de Rui Chafes, a sua relação com a natureza, não evocam curiosamente a portuguesa saudade, mas antes uma melancolia típica dos climas do centro da Europa. Daí se encaixe neste mundo outros filmes, de que Trabulo se socorre para pintar o seu, do romantismo alemão e de Tarkovski. As obras estão lá por uma afinidade estética, mas também por uma necessidade complementar de entender a escultura de Chafes a partir das suas raízes mais ocultas.
Tudo isto nos conduz ao encontro com o escultor e as suas palavras que de alguma forma o explicam. “O artista tem a missão de transportar a palavra, ou a chama, ou como lhe quiserem chamar…. transportar isso intacto e transmitir a outras pessoas”, assim se define Rui Chafes no filme. E diz mais: “O artista, com a sua consciência especial do mundo, vê as coisas antes dos outros e oferece-as”, com dotes promontórios. Contudo afirma: “Acho que a arte não é para o futuro, é para o passado; não é para os vivos, é para os mortos, como diz Genet, para o imenso povo dos mortos”.
João Trabulo seguiu Rui Chafes durante três anos para nos oferecer uma obra contemplativa, que tenta mostrar a arte pelo lado interior, fazendo muito mais do que descrever descrever o seu método de trabalho ou procurar leituras rápidas. Durante o Fim abre-nos os olhos para a escultura de Rui Chafes. A estreia comercial do filme coincide com a exposição do escultor no CCB.
Durante o Fim, de João Trabulo, 70 min
in http://aeiou.visao.pt/durante-o-fim-escavar-rui-chafes=f610189
Filed under: 2011, Final Cut - Visão, HALPERN, Manuel | Leave a comment »
“Não é coisa normal ver um documentarista que, passado à ficção, faça obra tão diferente daquilo a que nos habituou: paredes-meias com o experimentalismo, “Viagem a Portugal” é um objecto estético austero e despojado que ejecta toda e qualquer queda na banalidade melodramática para apenas reter o esqueleto descarnado do caso real em que se inspira. E é precisamente nessa intersecção que Sérgio Tréfaut ganha a sua aposta: é quase um desafio anti-naturalista, teatral, deixando os actores “desamparados” em cenários reduzidos ao mínimo. Talvez por causa disso, e da sua aposta na unidade aristotélica de tempo (24 horas), espaço (o aeroporto de Faro) e acção (apenas três personagens), Tréfaut consegue concentrar o espectador naquilo que realmente interessa, que é a dimensão humana da história, muitíssimo bem transportada por uma Maria de Medeiros que não víamos com tanta garra no cinema há anos e por uma Isabel Ruth arrepiante de mesquinhez. Uma surpresa.”
in http://ipsilon.publico.pt/cinema/filme.aspx?id=285760
Filed under: 2011, Ipsilon - Supl. Público, MOURINHA, Jorge | Leave a comment »
“Rui Chafes no seu ambiente
Durante o Fim
De: João Trabulo
Com:
Género: Documentário
Classificacao: M/12
Vários anos depois (é um filme com data de 2003), e já com um carreira feita nos circuitos alternativos, estreia-se em sala “Durante o Fim”, filme de João Trabulo centrado na obra, na figura e no universo de Rui Chafes. Apesar dos oito anos transcorridos desde a sua feitura não se tem perante ele nenhuma sensação de atraso ou de “perda de validade” – o que se calhar já é dizer alguma coisa sobre o filme.
Que é bastante inteligente na maneira de encarar o trabalho de Chafes (até pelo modo como o filma) sem nunca forçar uma “explicação”, uma “interpretação” ou qualquer coisa peremptória desse género, remetendo-se para a contemplação e para uma série de “pistas” que vêm mais envolver (envolver o filme, envolver as peças de Chafes) do que “decifrar” seja o que for. Nesse sentido, é um filme que trabalha sobretudo a criação de um ambiente (quase em termos musicais), um ambiente construído com elementos que podem parecer imediatamente mais próximos ou mais remotos do universo de Chafes mas que acabam por encontrá-lo sem margem para dúvidas.
Enquanto a câmara percorre – em travellings ou em planos fixos – as esculturas do artista, a banda de som convoca excertos de diálogos de dois filmes (“Heinrich”, de Helma Sanders-Brahms, sobre Kleist, e o “Andrei Roubliov” de Tarkovski). Será fácil compreender, através do filme, porque é que esses filmes, e os mundos que eles transportam, são convocados, mas antes da compreensão é importante o mundo “terminal” (o mundo “durante o fim”) que a sua presença vai criando – e nesse mundo, tudo o que é da ordem da arte e da matéria de Chafes ganha um sentido próprio. Pode-se argumentar que há planos a mais, sobretudo na parte final, que abrem para um simbolismo que parece demasiado etéreo para a solidez metálica das peças de Chafes, e criam uma impressão de afectação que o filme conseguira até então evitar. Não impede que “Durante o Fim” seja um filme onde se vê Chafes e, ao mesmo tempo, um olhar autónomo sobre ele.”
in http://ipsilon.publico.pt/cinema/filme.aspx?id=145316
Filed under: 2011, Ipsilon - Supl. Público, OLIVEIRA, Luís Miguel | Leave a comment »
“Que fazer com uma actriz capaz de se transfigurar num “bicho” de emoções contidas? Que fazer com uma outra actriz capaz de se “retirar” do próprio corpo, deixando apenas à vista a aridez de um olhar que não vê? Que fazer com Maria de Medeiros e com Isabel Ruth?
O filme Viagem a Portugal, de Sérgio Tréfaut, não tem, infelizmente, resposta a estas perguntas. Ao encenar o caso verídico de uma cidadã ucraniana que se viu bloqueada na teia da burocracia portuguesa (quando, em 1998, por altura da Expo, tentava reunir-se com o marido), o filme vai-se enquistando no seu próprio formalismo, pelo caminho alienando as suas actrizes.
O recurso à fotografia a preto e branco joga-se no “efeito-bandeira” que domina todo o filme: as imagens são bandeira de uma prova “acrescida” de real (menos cor = mais verdade), do mesmo modo que a acção é prova de uma culpa que devemos assumir (Portugal recebe, ou recebia, mal os estrangeiros).
O mais desconcertante é que parece haver aqui uma vontade de realismo que tende para uma ostentação formal bizarra, dir-se-ia de ficção científica. Como se se tratasse apenas de confirmar uma “mensagem” mecanicista, em boa verdade decidida desde o arranque do filme. Além do mais, nunca, em nenhum momento, qualquer outro elemento do elenco consegue disfarçar a sua inoperância dramática face à presença das duas actrizes principais.”
in http://sound–vision.blogspot.com/2011/06/viagem-portugal-realismo-ou-ficcao.html
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“Todas as personagens, quer a imigrante quer os burocratas, enredadas numa coisa que à falta de melhor termos chamaremos o “sistema”.
Depois dos documentários que conseguiram encontrar um eco público raro (“Lisboetas”, e mais recentemente “A Cidade dos Mortos”), Sérgio Tréfaut estreia a sua primeira longa-metragem de ficção. Não uma “ficção convencional”, no sentido em que a expressão convoca expectativas naturalistas que o filme não confirma, e não uma “ficção fantasiosa”: como nos seus documentários, é ainda o “caso social” que motiva o olhar de Tréfaut.
Esta “Viagem a Portugal” (título irónico, porque praticamente não se sai dos corredores e gabinetes do SEF no aeroporto de Faro, é apenas uma “viagem à antecâmara burocrática de Portugal”) tem uma raiz precisa, a história verídica de uma mulher ucraniana que não conseguiu entrar em Portugal para vir ter com o marido, cá residente com os papeis em ordem (o facto de o marido ser africano terá ajudado ao curto-circuito da burocracia, pouco preparada para lidar com as infinitas variações das vidas dos seres humanos). Isto passou-se por alturas da Expo 98, data que o filme mantém, época em que Portugal era rico e se fazia difícil.
O filme narra esse episódio, transformado numa epopeia da papelada e do legalismo exacerbado: horas a fio, uma mulher ucraniana tenta convencer funcionários e dirigentes do SEF de que não há nenhuma boa razão (burocrática, em primeiro lugar) para não a deixarem entrar em Portugal. Num preto e branco frio e contrastado (para cortar o naturalismo, mas também para inundar o filme com uma “luz de gabinete”, doentiamente descolorida), todas as personagens, quer a mulher quer os burocratas, ficam enredadas numa coisa que à falta de melhor termos chamaremos o “sistema”. Isto é o que Tréfaut consegue melhor, até pela cuidadosa ausência de maniqueísmo: dar espaço para que apareça o “processo”, e depois ver como o “processo” engole toda a gente, independentemente da sua razão, da sua vontade ou mesmo da sua humanidade. (Houve alguém que definiu o fanatismo assim: “quando se continua a fazer uma coisa mesmo de depois de ter sido esquecida a razão por que se a fazia”; em última análise, “Viagem a Portugal” mostra bem como toda a burocracia tende para o fanatismo). Por esse lado, é quase como uma miniatura wisemaniana resolvida em teatro (que se podia chamar, naturalmente, “Serviço de Estrangeiros e Fronteiras”).
Isso vale o filme, que nem sempre consegue escapar uma certa rigidez, indesejada no que devia ser apenas a descrição de uma aridez, e não resolve completamente a sua relação com a repetição (de que os campos/contracampos “em diferido” são o mais exposto exemplo). Em todo o caso, vale a pena destacar que se trata de um “filme de actores”, e que deles nascem alguns momentos preciosos (sobretudo Isabel Ruth, a funcionária angustiada com o “réveillon”, e a protagonista, Maria de Medeiros, que há muito tempo não víamos tão bem).”
In http://ipsilon.publico.pt/cinema/filme.aspx?id=285760
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O Estranho Caso de Angélica
De: Manoel de Oliveira
Com: Ricardo Trêpa, Pilar López de Ayala, Leonor Silveira, Luís Miguel Cintra, Ana Maria Magalhães
Género: Drama
Classificacao: M/12
“Os fantasmas da câmara e os fantasmas da imaginação têm a mesma natureza.
Em muitos dos seus filmes, e por certo em vários dos seus maiores filmes, Oliveira inventou um tempo e uma época, lançando códigos (de conduta social, de representação, de narração) que o senso comum daria por “desactualizados” ao confronto com aquilo a que o senso comum chama a “actualidade”. A tensão gerada por tal confronto nem sempre é o elemento essencial, mas por norma é um dado determinante, ao menos no modo como afasta os filmes de um naturalismo puramente mimético e “contemporâneo”. Isto tem-se adensado nos últimos anos – “Belle Toujours”, as “Singularidades de uma Rapariga Loura” – e “O Estranho Caso de Angélica” também é assim, dominado pelo “princípio da incerteza” cronológica. Quando tudo parece apontar para determinada (e passada) época, eis que o “nosso tempo” irrompe, quase como um arrepio. Nas “Singularidades” era poderosíssimo o momento em que, por entre as incidências queirozianas da narrativa (era, recorde-se, uma adaptação de uma história de Eça), alguém vinha falar em “euros”. Na “Angélica” não faltam momentos destes.
E porventura com outra dimensão, uma vez que é um filme que pratica o “overlapping” temporal (passe o anglófono palavrão) de várias maneiras. É, para começar, baseado num argumento que Oliveira escreveu no princípio dos anos 50 e nunca tinha podido ou querido filmar até agora: a história de um fotógrafo que se apaixona pelo cadáver, jovem e belo, de uma rapariga morta subitamente. Depois, é um filme que evoca, através dessa personagem do fotógrafo (Ricardo Trepa, mais do que nunca a interpretar um “duplo” do seu avô), o que parecem ser “revisitações” de alguns momentos da obra de Oliveira, do “Douro” à “Caça”. Finalmente, é um filme que joga, a partir de certa altura a pleno vapor, com o arcaísmo cinematográfico, com o “efeito especial” rudimentar (ou seja: com o “efeito especial” tornado “efeito poético”), de inspiração que podia ter nascido em Méliès ou em Cocteau.
Apesar de toda a tensão criada pelo choque de códigos, ou pelas conversas onde se discute o “mundo contemporâneo”, este último aspecto é essencial, porque o “Estranho Caso de Angélica”, no limite, é um filme sobre o cinema, ou mais especificamente, um filme sobre uma atracção (entre a máxima inocência e máxima perversidade) pelo cinema como porta de entrada para um mundo alternativo, onde tudo é possível (até uma história de amor com uma rapariga morta). Talvez não se exagere muito se, desse ponto de vista, se disser que se trata dos filmes mais confessionais de Oliveira, e não custa nada imaginá-lo a escrever este argumento nos anos 50, altura em que estava, na prática, impossibilitado de filmar alguma coisa com este tipo de fôlego. É pela câmara do fotógrafo que a rapariga se manifesta, ou que o fotógrafo imagina que a rapariga se manifesta – vai dar ao mesmo, porque os fantasmas da câmara e os fantasmas da imaginação têm, no fundo, a mesma natureza. “O Estranho Caso de Angélica” só diz isto. E o que é que ele faz lembrar que tenha sido feito em tempos recentes? Apenas “A Fronteira do Amanhecer”, de outro “arcaico”, Philippe Garrel, para quem o cinema também é uma porta de entrada para um mundo que se liberta do meramente “possível”, quer dizer, do tristemente “real”.”
In http://ipsilon.publico.pt/cinema/filme.aspx?id=272119
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“”América” é uma primeira obra aplicada e honesta. Falta-lhe é “punch”, como se João Nuno Pinto (vindo da publicidade) se aproximasse do cinema com um respeito “escolar” e pensasse no filme como um exercício de graduação, e portanto, dominado pela preocupação de “fazer bem”. A preocupação é compensada – “faz bem”, o filme é escorreito, cuidadoso, funcional – mas corta a afirmação de uma personalidade. Falta-lhe “punch”, um outro sentido do risco, um rasgo qualquer.”
In http://ipsilon.publico.pt/cinema/filme.aspx?id=282154
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“Há dois filmes a lutar entre si no interior da estreia do publicitário João Nuno Pinto, e o que ganha não é o mais interessante. De um lado, temos o melodrama da emigração clandestina, que a abertura atmosférica sugere mas a que o filme só a espaços faz justiça, através da história de Liza (Chulpan Khamatova), imigrante russa a quem o casamento com um vigarista sedutor veio estragar os planos. Do outro, temos a crónica truculenta da malandragem desenrascada, que segue a tentativa do marido Vítor (Fernando Luís) e dos seus comparsas de alcançarem o estatuto de mestres do crime que lhes escapa. E é essa comédia truculenta, filmada fotogenicamente numa Cova do Vapor de bilhete postal saída dos filmes de Jean-Pierre Jeunet, a que João Nuno Pinto dá prioridade na sua adaptação de um conto de Luísa Costa Gomes. O que resulta é um filme simpático, dirigido com evidente estilo e atenção aos actores, mas desequilibrado, incapaz de escolher se quer seguir o drama da imigração ou a comédia do pequeno crime. São, ainda assim, falhas de primeiro filme que sugere haver talento para mais e melhor.”
In http://ipsilon.publico.pt/cinema/filme.aspx?id=282154
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“Lembramo-nos ainda da mini-polémica online à volta da primeira longa de Ivo Ferreira, “Em Volta” (2002), um “road movie” complacente e amador sobre um homem em busca de si próprio. Sete anos depois, o realizador insiste no “road movie” e na busca de si próprio com uma segunda longa que, apesar de estar uns quantos furos acima da sua confrangedora estreia, desbarata uma boa ideia num filme excessivamente frágil, onde as coisas parecem acontecer apenas porque sim e a credibilidade da narrativa é minada a cada instante.
No processo de encaixotar o recheio da casa familiar que vai ser vendida, um encenador de teatro encontra papéis velhos que podem lançar luz sobre o que aconteceu ao seu pai, militante anti-fascista desaparecido quando ele tinha poucos anos, e parte em busca dos antigos companheiros que possam lançar luz sobre o assunto. Mas a referência ao 25 de Abril nunca passa de um mero pretexto para lançar o “road movie”, e este pelo seu lado não tem nunca sustentação narrativa para justificar a sua existência, perdido por um lado em lugares-comuns e por outro em elipses demasiado obscuras para serem credíveis. ”
In http://ipsilon.publico.pt/cinema/filme.aspx?id=283566
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“Pronto há mais de dois anos, e mostrado, salvo erro, na edição 2009 do IndieLisboa, a segunda longa-metragem de ficção de Ivo M. Ferreira chega agora às salas comerciais. (Estas longas esperas pela estreia já foram normais para os filmes portugueses, depois deixaram de ser, e agora se calhar vão voltar a ser, porque o gargalo do parque de salas é cada vez mais estreito e todo o filme que não for uma pequena máquina de vender pipocas é, por regra, pouco desejado).
Adiante. “Águas Mil” é um evidente progresso em relação à primeira longa de Ivo Ferreira, “Em Volta”, que era um “travelogue” demasiado amorfo e um inquérito cultural (sobre “o amor”) demasiado naif. Seguramente menos amorfo e menos naif, “Águas Mil” preserva alguma coisa de “travelogue” – viagem pelo Sul de Portugal e Andaluzia – e de inquérito, neste caso, familiar. O protagonista, cujo pai se perdeu algures durante o PREC (ninguém sabe, ou ninguém quer contar, o que lhe aconteceu), descobre em casa da avó a memorabilia suficiente para lhe espicaçar a curiosidade e, muitos anos depois, ir tentar perceber o que se passou com o pai (e com a mãe, e com os amigos do pai e da mãe).
Os filhos do PREC a olhar para os pais e a tentar compreender o que é que eles foram, se quisermos resumir “Águas Mil” telegraficamente. A distância é tão grande que para chegar a essa compreensão é necessário como que montar um “puzzle”, ou entrar numa espécie de “rally paper”. Isto o filme sugere bem – com os três carros a seguirem-se uns aos outros, e com o aproveitamento de certos cenários (o episódio naquela absurda cidade “western” da Andaluzia, relíquia do tempo em que os italianos lá iam filmar as suas coboiadas “spaghetti”). Assim como sugere o esvaziamento ideológico: o único lugar para a “revolução” é o teatro, na peça em que o protagonista trabalha, e que é usada como uma espécie de coro.
Inteligente, às vezes fino (a enigmática “resolução” do mistério), só é pena que “Águas Mil” não seja capaz de evitar que a sobriedade da sua narração, muito “clássica”, se deixe invadir (e desequilibrar) por alguma moleza demasiado convencional.”
In http://ipsilon.publico.pt/cinema/filme.aspx?id=283566
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“As fotografias e os seus corpos
por JOÃO LOPES
Em vésperas de mais um 25 de Abril, não deixa de ser sintomático que tenha sido um objecto de cinema a lançar nos circuitos audiovisuais algumas imagens “diferentes” das memórias do Estado Novo. Falo de quê? Das fotografias dos prisioneiros da PIDE que constituem a matéria de base do filme 48, de Susana Sousa Dias, estreado nas salas escuras na passada quinta-feira. De facto, o imaginário televisivo que domina o nosso espaço social há muito gerou (e impôs) uma série de lugares-comuns que tende a representar a ditadura salazarista como uma colagem de símbolos maniqueístas onde só há “bons” e “maus” sem qualquer espessura carnal.
O tema nuclear de 48 é, justamente, essa carnalidade que, para além (ou aquém) das ideologias, permite perceber que a verdade de cada ser humano passa sempre pela singularidade do corpo. E não há nada de banal em tal opção, quanto mais não seja porque se trata de evocar, em particular, as torturas a que muitos dos protagonistas foram sujeitos. Em vez de cair na retórica televisiva (um microfone à frente de um entrevistado encarregado de “explicar” as imagens de arquivo), Susana Sousa Dias aposta numa tensão radical: de um lado, nas imagens, as fotografias do arquivo da PIDE, mostrando os rostos duros e sofridos dos prisioneiros; do outro, no som, as vozes daqueles que estão nas fotografias.
Tal opção envolve uma consciência das linguagens audiovisuais que, todos os dias, as televisões tentam minimizar. Assim, no espaço televisivo, a maior parte dos dispositivos favorece a ilusão de que combinar imagens “informativas” com sons “descritivos” é um acto espontâneo, espontaneamente vocacionado para uma verdade inquestionável. Para além da percepção determinista do mundo à nossa volta, semelhante atitude tenta retirar aos que produzem e montam as imagens qualquer dever de responsabilidade (em relação à complexidade do real).
Ora, justamente, 48 parte de uma questão visceralmente cinematográfica (e de que as televisões, por um qualquer decreto divino, quase sempre se julgam dispensadas). A saber: como enfrentar a densidade histórica de uma imagem? Mais do que isso: como lidar com o facto de qualquer imagem ser, não um objecto congelado na história, mas sim um elemento que renasce e, num certo sentido, se reinventa cada vez que sobre ela se deposita um novo olhar?
E há um espantoso efeito que nasce de tudo isto: subitamente, as imagens da PIDE deixam de existir como testemunhos frios, mais ou menos “esgotados” na sua condição de documentos históricos, para renascerem através da vida que as vozes do filme lhes devolvem. É essa, afinal, a genuína dimensão política deste filme invulgar: não a colagem a qualquer discurso normativo (televisivo ou partidário), mas sim a apropriação da herança (fotográfica) da PIDE para construir uma outra visão, tão politica quanto cinematográfica.”
in http://www.dn.pt/inicio/opiniao/interior.aspx?content_id=1836743&seccao=Jo%E3o%20Lopes
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“Os habitantes de um cemitério do Cairo, que vivem juntos dos vermes e da prodridão, contam, e assim se contam: “a nossa cidade”
Serge Tréfaut contou já em entrevistas a aventura que foi a rodagem deste documentário sobre uma cidade paralela que se formou dentro de uma cidade (o Cairo, que circula à volta e não querendo reparar). É uma cidade entre túmulos ou dentro de túmulos em que se monta uma casa que várias vezes é preciso desmontar por causa de um funeral – e a seguir volta a pôr-se a mesa ou a fazer a cama sobre o local onde jaz, novinho em folha, o morto. É uma cidade paralela: o cemitério do Cairo.
Devido às idas e vindas (Portugal-Egipto) espaçadas no tempo, contou o realizador, essa “cidade” parecia resistir a deixar-se fixar e à sua singularidade no documentário; e as figuras não conseguiam ascender à condição de personagens. Tréfaut lançou, então, mão de um artifício – a voz “off ” de um coveiro. Sabemos como a voz “off” costuma ser bengala nos documentários, mas aqui ela revelou-se preciosa: enche “A Cidade dos Mortos” de espírito(s), do espírito de um lugar, algo que, filtrado pelo olhar de Tréfaut, aparece com uma energia pícara (e às vezes até algo próximo de um certo neo-realismo fantasista: a sequência em que o circo chega à cidade, ao cemitério, podia vir de “La Strada”, de Fellini). E visivelmente serena e orgulhosa, como nas cenas de um casamento que o realizador decidiu autonomizar da longa-metragem, porque corria o risco de ocupar nela demasiado espaço, e funciona como um bónus na sessão de cinema: “Waiting for Paradise”.
Os habitantes deste cemitério, que vivem próximos dos vermes e da prodridão, contam, e assim se contam: “a nossa cidade”. Sempre entre a vida e a morte, é algo que se tacteia, sem se fixar. “A Cidade dos Mortos” mantém sempre a dualidade como horizonte – é uma forma de se manter sempre ao alcance dos espíritos -, não forçando nunca um duelo ou uma vitória: uma espécie de toca-e-foge que vai da podridão da carne, do cheiro das “ruas”, para a corrida hormonal dos rapazes que fazem o “cruising” atrás das raparigas. ”
in http://ipsilon.publico.pt/cinema/filme.aspx?id=279804
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“A Cidade dos Mortos
Cinco anos depois do sucesso de “Lisboetas”, Sérgio Tréfaut regressa às salas com “dose dupla” que, de certo modo, funciona como os dois lados de um díptico. Primeiro, “A Cidade dos Mortos”, documentário de uma hora rodado ao longo de vários anos nas necrópoles do Cairo usadas como apartamentos para aqueles que não conseguem arranjar uma casa “verdadeira”; depois, “Waiting for Paradise”, espécie de “post-scriptum” de vinte minutos que regista o modo como os casamentos são celebrados, completado um ano depois do “filme-mãe”. Ambos completam-se, dialogam um com o outro mesmo que de formas diferentes (mais convencionalmente documental na média, mais sensorialmente atmosférica na curta), sempre dentro das coordenadas do “cinema do real” que reproduz no écrã as histórias que se vão encontrando. Nesse aspecto, “A Cidade dos Mortos” é um belíssimo “follow-up” a “Lisboetas”, de novo penetrando a fundo num universo paralelo que só visto de dentro ganha sentido e razão (e que não haja dúvidas que há muito mais universo paralelo neste filme do que naquele esboço sem rei nem roque dos manos Patrocínio que tanta sensação causou há poucas semanas). O problema de “A Cidade dos Mortos” é mesmo só um: fica a sensação de compressão, de brevidade, de que ficou muito mais por contar, a água na boca de querer saber mais e passar mais tempo ali. ”
in http://ipsilon.publico.pt/cinema/filme.aspx?id=279804
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“O efeito da tortura no rosto dos humanos
Cansados de ler os “colunistas de direita” a lembrarem que nasceram depois do 25 de Abril como se isso os desimplicasse de alguma coisa, “48” é o filme da implicação absoluta
À saída de uma projecção de “48” a que assistimos chegou-nos ao ouvido o queixume de alguém que lamentava que o filme, sim senhor, tal e tal, mas podia ser “mais cinematográfico”. A conversa não era connosco, se fosse teríamos retorquido que é justamente ao contrário: é por não ser “mais cinematográfico”, no exacto sentido que a expressão pretende sugerir, que “48”, sim senhor, tal e tal, é um filme notável. Era pedir-lhe que deixasse de ser o que é para ser uma coisa qualquer (por exemplo, cruzes canhoto, um programa de televisão. “cinematográfico” q.b.).
Toda a força de “48” vem da maneira como se encerra dentro do seu modelo, obstinando-se em não deixar entrar “ar” lá dentro. Um plano que fosse que só lá estivesse para descomprimir, para arejar, arruinava o filme. Fala-se de tortura, de situações de extrema violência física e psicológica. Nenhum filme, e nenhuma experiência fílmica, poderá alguma vez ser comparável (fora ocasionais forças de expressão) com uma sessão de tortura real. Mas não há razão para que o espectador que vai ver um filme onde se fala de tortura não possa estar totalmente disponível, sem precisar de pancadinhas nas costas. O filme não as dá – é a sua maneira de estar à altura, e de ajudar o espectador a estar à altura, do que nele se diz e se mostra.
É fácil descrevê-lo sumariamente. Faz-se apenas de fotografias (“mugshots”) de pessoas que foram presas pela PIDE, enquanto na banda de som ouvimos o depoimento dessas mesmas pessoas quando, muitos anos depois, voltam a ter à frente as imagens dos seus rostos encarcerados. As fotografias correspondem a momento diferentes do seu tempo de prisão (meses, anos), e montadas em sequência criam uma espécie de “morphing” sem “morphing”, como se cada rosto se fosse tornando numa versão alterada de si próprio. Os cientistas (ou “cientistas”) do século XIX que se dedicaram ao estudo das tipologias fisionómicas podiam encontrar aqui uma categoria menos fantasiosa do que aquelas por que se interessaram: a fisionomia do preso político. E a banda de imagem de “48” podia servir-lhes de documentação para estudar o efeito que o encarceramento e a tortura operam sobre o rosto dos seres humanos.
Mas há também a banda de som, e é no trabalho sobre ela que “48” se perfaz plenamente como filme que, de facto, não é uma coisa qualquer. Há o interesse intrínseco dos depoimentos, claro, onde se aprende alguma coisa sobre a vida nas mãos da PIDE (e também sobre a tristeza que isto era cá fora), e se percebe, nos vários depoimentos femininos, a que ponto se praticava uma tortura “de género”, em perfeita noção de que há maneiras específicas de fazer sofrer as mulheres que não se aplicam aos homens. Mas mais ainda, há uma extraordinária “mise en forme” desses depoimentos. Que conservam hesitações e silêncios, blocos sólidos de conversa (ou montados de forma a que o parecem) em vez de “momentos escolhidos”. E não surgem “limpos”, quer dizer, percebe-se que Susana de Sousa Dias não levou as pessoas para um estúdio para lhes gravar as palavras num ambiente de total isolamento sonoro. Pelo contrário, nenhum depoimento é impermeável aos ruidos do exterior: buzinadelas na rua, britadeiras, etc. Nunca é ostensivo, nunca se sobrepõe às vozes, mas esse ruido está lá. O que esse ruído é é simples de dizer: é a vida a penetrar no filme, a vida de todos os dias, nossa contemporânea. É a maneira de lá estarmos todos, todos os que podíamos ser os autores das buzinadelas captadas pelo microfone de Susana de Sousa Dias. Cansados de ler os proverbiais “colunistas de direita” semana sim semana não a lembrarem que nasceram depois do 25 de Abril como se isso os desimplicasse de alguma coisa, “48” é o filme da implicação absoluta, independentemente da data de nascimento. E fá-la (ou fala-a, sem a “dizer”) apenas através de um minucioso trabalho sobre as suas formas e sobre os seus materiais. Se isto não é “mais cinematográfico”, o que raio será.”
in http://ipsilon.publico.pt/cinema/filme.aspx?id=279849
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“A Cidade dos Mortos, de Sérgio Tréfaut
A Cidade dos Mortos. AS VIDAS DO CEMITÉRIO
Daqui ninguém sai vivo. Sérgio Trefaut mostra-nos a Cidade dos Mortos, no Cairo, num documentário que mostra um cenário onde há vida além da morte
18:34 Terça feira, 12 de Abr de 2011
Os vivos dormem por cima, os mortos dormem por baixo. Por vezes há uma linha ténue que separa a vida da morte, por outras anda tudo misturado, como se por contraste fizessem parte da mesma matéria. Os mexicanos fazem da morte um culto, exorcizam os seus fantasmas assimilando-os. Mas nenhuma cultura terá chegado ao extremo desta Cidade dos Mortos, no Cairo, que Sérgio Tréfaut retrata no seu filme. A cidade é um imenso cemitério, os moradores têm túmulos em casa, e os mortos fazem parte do quotidiano. Não é um cemitério morto, explique-se, por ali continuam a ser realizados funerais, a transladarem-se corpos, a venderem-se jazigos.
Um cenário destes, obviamente, é muito apetecível para um documentário, até para a National Geografic. Se a curiosidade natural que temos por outras culturas, por si só, desperta interesses pelos costumes mais simples, o que dizer do dia-a-dia tão invulgar destas pessoas. Só que Sérgio Trefaut, autor de Os Lisboetas, fundador e ex-diretor do DocLisboa, sabe da necessidade de uma perspetiva.
Sérgio Tréfaut teve que ultrapassar vários obstáculos de produção. Não foi fácil filmar no Egito de Mubarak. Deparou-se com muitíssima burocracia que levou vários anos a ser ultrapassada, a que se juntaram vários problemas técnicos. Além do constrangimento natural de filmar num local de que desconhece a cultura e a língua. Tréfaut venceu esses obstáculosde forma criativa, não entrando naquele que já é um lugar-comum do documentarismo, que é a exposição autoconsciente das peripécias do próprio documentário -seria tentador fazer um documentário a falar de si próprio.
A Cidade dos Mortos não é falado em português, mas sim em árabe. Para isso, de forma um pouco plástica para um documentário, Sérgio Tréfaut serve-se de um narrador. Um narrador participante, um dos coveiros que vive na cidade. O seu tom é mesmo o de um narrador que conta uma história. E as suas palavras são ilustradas com imagens e intercaladas com depoimentos de outras pessoas.
Tréfaut definiu como objetivo do filme “mostrar a relação dos homens com a vida e com a morte, de pessoas de quem gosto e que admiro (e que podem viver em qualquer latitude), da alegria e do entusiasmo que podem ter pela vida, em condições adversas.” Há portanto várias dimensões, por um lado o exotismo da situação e a forma como as pessoas que vivem entre os mortos lidam com a própria morte. Nessa perspetiva tudo se mostra desde casamentos a teatros de fantoches, a insistência quase caricata em levar a vida como se nada fosse, como se a morte não tivesse sempre à espreita. Mas por outro, exibem-se as próprias dificuldades, que não se trata propriamente do medo, do terror dos fantasmas, ou do desconforto tétrico, mas sim de questões algo mais práticas, como o próprio cheiro que empesta a cidade.
A tentativa de ir além, ou noutra direção, da National Geographic é plenamente conseguida. Não é um filme da BBC ou um teledocumentário banal. Contudo, a questão metafísica, a forma como lidam com a morte, não se torna particularmente rica. Não vai muito além do “do pó nasceste em pó te hás de tornar”. O que até defrauda eventuais expectativas místicas. Juntamente com esta média metragem é exibida uma curta, Waiting For Paradise, de 19 minutos, que tem a música como pano de fundo e é o complemento mais indicado do filme.”
in http://aeiou.visao.pt/a-cidade-dos-mortos-as-vidas-do-cemiterio=f598490
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“48, de SUSANA DE SOUSA DIAS
48: PERFILADOS DE MEDO…
… e de humilhação e coragem. Em 48, Susana Sousa Dias devolve voz àquilo que por natureza é mudo. Por detrás das fotos de cadastro da PIDE pressentem-se gritos de tortura
Ana Margarida de Carvalho
18:13 Quarta feira, 20 de Abr de 2011
Tem mais ou menos o efeito Polaroid mas aplicado ao som. Se se abanar e aguardar um bocadinho, um lento fade in auditivo vai-se fazendo ouvir, gradualmente, até a mudez se tornar sussurro e os murmúrios se tornarem vozes e os rumores palavras, cada vez mais nítidas e claras. Foi mais ou menos isto que a realizadora Susana de Sousa Dias fez no documentário 48 (estreia-se hoje, dia 21), com as fotos de cadastro de 16 resistentes (na sua maioria do PCP), presos e torturados, durante quase meio século de fascismo em Portugal. Em 2000, Susana “caiu” nos arquivos da Pide para fazer Enfermeiras do Estado Novo e Natureza Morta (2005). Nunca mais de lá saiu. Nem quer sair tão cedo. Quando abriu os dossiers eram centenas e centenas de rostos, alguns deles muito jovens, de olhar frontal, a três quartos e de perfil. “Era um mundo fantasmático”, depressa se apercebeu. Quis descobrir o que havia por detrás daqueles olhares, o que eles revelam, e escondem, o que não é aparente nem descortinado à primeira vista.
Todo o filme, 93 minutos, é construído através da montagem das diversas filmagens das fotos de cadastro, acompanhadas de depoimentos dos protagonistas na actualidade, que nunca aparecem, apenas se lhes escuta as vozes, as palavras, as lembranças e sobretudo os silêncios, as pausas, aquelas pequenas reticências que chegam antes de uma recordação difícil. Aparentemente, só aparentemente, o filme é a negação do cinema. A imagem parece estática mas há pequenos movimentos de câmara, quase imperceptíveis, numa slow motion calculada, para manter a atenção do espectador e criar um efeito quase hipnótico. Primeiro aquelas imagens que surgem do escuro. E antes da voz, o som do silêncio (o paradoxo é possível) que começam a formar o espaço cinematográfico. Os pequenos rumores da presença física, de quem está do outro lado e observa aquelas fotos e tem de se confrontar com experiências dolorosas e traumáticas, um inspirar mais profundo, um “ai”, um choro suprimido, um suspiro, um esfregar de olhos ou de testa que se adivinha… As imagens não competem com o som, antes se irmanam e fundem numa sintonia desconcertante. E as histórias que vão surgindo, ora de jorro, ora a conta gotas, e cada palavra ganham uma dimensão avassaladora. Como se atrás dela se perpetuasse um eco.
O “nojo e a revolta” que uma das torturadas sentia pelos algozes da PIDE. A camisa que daí a nada se encheria de sangue. O “casaquinho branco” com que mulheres eram forçadas a limpar as próprias necessidades e a menstruação que escorria para o chão, perante o gáudio dos agentes: “Pareço um cão à beira da estrada morto e a cheirar mal”. A voz de Dias Lourenço, entretanto falecido, (18 anos de prisão) que nas suas fotos de cadastro “usava” sempre uma expressão desafiadora: “A mim não tinham a alegria de me ver com cara de torturado”. E a idade a avançar nos rostos e nas rugas dos resistentes. Com mais de uma semana de tortura do sono em cima (“a tortura do sono é a morte lenta”), com mais uma dezena de anos de clausura, mais cabelos brancos nas mulheres, mais entradas nas cabeças dos homens… Por vezes um riso inusitado, a intromissão do absurdo, como a história do preso que foi levado de eléctrico e ainda queriam que pagasse o bilhete…
Mas depressa se regressa ao horror da tortura, dos choques eléctricos, da estátua, do medo de falar e comprometer camaradas, da pancada, do sono, do desejo da morte. “Como é possível estar 18 dias sem dormir e o coração não parar?”. Quando a morte deixa de ser medo, e se torna desejo. O choro de uma mãe a quem ameaçam matar o bebé. O relato de um pai a quem a filha pequena estranha quando o vê “inteiro” numa visita presencial: “Pensava que eu não tinha pernas”, sempre o vira a meio corpo, no parlatório. As alucinações da privação do sono, os pêlos azuis que cobriam os corpo, as “rendas lindas” que cobriam as paredes de cima abaixo, os pássaros pretos que saltavam no chão de madeira. E as descrições tremendas dos presos moçambicanos (que nem tinham direito a foto) que recordam os gritos lancinantes, e o som do chicote na carne, “o cavalo marinho suporta-se, mas os cabos de aço levam a pele agarrada”. E a morte, sempre atenta. “Mas ela nunca vem quando mais se deseja”. E para muitos a única corda de liberdade a que se podiam agarrar, na voz de Domingos Abrantes: “Nós tínhamos um poder único, que era o de não falar”. ”
in http://aeiou.visao.pt/48-perfilados-de-medo=f599559
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“48
realização: Susana de Sousa Dias
produção: Kintop (Portugal), 2010
Apesar de independentes, ganha força ver 48 após os filmes que a edição deste ano do Panorama nos trouxe, sobre o que o cinema português tem feito da sua herança histórica recente e do uso do documentário, mais precisamente, dos tempos imediatamente seguintes ao 25 de Abril. Pois o que 48 de Susana de Sousa Dias nos oferece é uma proposta semelhante, mas por um caminho diferente. Ao compor o seu filme à volta de retratos retirados dos arquivos da PIDE (retratos de reclusos feitos à entrada ou saída da sua prisão), a documentarista acrescenta uma narração feita pelos visados já no presente, anos mais tarde, sobre as suas recordações desse momento e daqueles que marcaram a sua estadia na cadeia — dias, semanas e anos da maior tortura física e mental. Inteligentemente, a imagem foca-se no momento de “captura” – o único em que a imagem intervém, de facto, nesse estado de sítio -, escondido de uma população portuguesa alienada e enganada, ou cuja prática do seu Estado era negada por outros cúmplices.
O que Susana de Sousa Dias nos oferece neste poderoso documento será um estudo não apenas do que um Estado fez sobre os seus cidadãos que queriam ser livres, mas uma oportunidade de trabalharmos aquilo que foi perdido nesse período negro do nosso país, e cujo sentimento opressivo ainda se estende, moralmente, para alguns dos seus julgamentos interiores. Ao dar a voz que foi negada a esses reclusos, a realizadora estende, também, o espaço de liberdade ao documentário e ao cinema, nunca levando a sua montagem para um documento panfletário ou de manifestação, mas por uma simples reconstrução histórica e verdadeira concretizada nos olhos e mente de cada espectador, alimentado pela voz e pelas diferenças de tempos entre rostos recém-capturados e agredidos e habitantes de um país cuja história sofreu o mesmo destino.
É sobre a falha entre esses dois espaços que o filme se debruça, cujo experimentalismo e tese respeita sempre a matéria de película de onde é retirado, vivendo sobre essa aura arquivista de um regime burocrático que arrumava os seus cidadãos por categorias possíveis de existência ou repressão. Anos mais tarde, é como que o cinema recuperasse uma certa função indispensável ao pensamento das suas imagens – mais que qualquer arte, da vida de um país -, e nos devolvesse, agora no presente, um devido território para questionarmos, pelos rostos escolhidos desse passado, a experiência livre de aceitarmos o nosso falhanço e a luta de outros que nos alertavam para este. 48 será, portanto, não apenas um objecto fortíssimo mas uma oportunidade indispensável para dar devido seguimento a um olhar sobre o que moveu o nosso património de imagens, tantas vezes esquecido e ignorado perante um frenesim mediático e simplista do seu serviço público e da classe política que a governa.”
in http://dacasaamarela.blogspot.com/2011/04/48.html
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“Opinião
Adivinha quem vem jantar?
por JOÃO LOPES
Boonmee (Thanapat Saisaymar) é uma daquelas personagens que, ao aproximar-se da morte, arrasta consigo toda um desejo utópico que, paradoxalmente, sempre habitou o cinema, desde os tempos heróicos do mudo. A saber: mostrar o… invisível. Neste caso, através do fantasma da mulher de Boonmee. Filme fantástico, então? Sim, sem dúvida. E o título, O Tio Boonmee que se Lembra das suas Vidas Anteriores, aí está para situar a lógica do seu projecto: recordar é coexistir com as ambivalências de todas as memórias, relativizando o conhecimento, suscitando novos olhares e pensamentos. Com uma peculiaridade que, à falta de melhor, apetece chamar oriental. Não estamos, de facto, perante um mundo alternativo que se demarca do nosso, discutindo a sua coerência, talvez mesmo ameaçando a sua estabilidade. Bem pelo contrário: os fantasmas de Boonmee podem assumir as formas menos ortodoxas, mas distinguem-se por uma desconcertante sociabilidade. No limite, chegam e… sentam-se à mesa para jantar. A realização de Apichatpong Weerasethakul enraíza-se nessa estranha familiaridade do quotidiano que faz com que os gestos mais banais se apresentem enredados com o medo, o sexo, o pressentimento da morte e a sempre indesmentível pulsão de vida. De tal modo que, no nosso obstinado ocidentalismo, apetece descrever O Tio Boonmee… como uma fascinante deambulação “freudiana” pelas paisagens mais secretas da nossa muito humana vulnerabilidade. A evocação do pai da psicanálise será deslocada a pretexto de um objecto tão ligado ao património lendário da Tailândia? Talvez. O certo é que os nomes que damos às coisas são também instrumentos decisivos da nossa identidade. Apichatpong Weerasethakul, por exemplo: os seus amigos chamam-lhe… “Joe”.”
in http://www.dn.pt/inicio/opiniao/interior.aspx?content_id=1819118&seccao=Jo%E3o%20Lopes
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“Entre as imagens
Jean Renoir ou o respeito das ideias
por JOÃO LOPES
No mercado português do DVD surgiu, há poucas semanas, um dos clássicos absolutos do cinema francês: A Regra do Jogo (1939), de Jean Renoir, incluído numa caixa com um total de cinco títulos deste cineasta. Se o paralelismo pode fazer sentido (e pode!), este é um filme que está para o cinema europeu como O Mundo a Seus Pés (1941), de Orson Welles, para a produção clássica de Hollywood. A saber: um momento radical de vitalidade criativa onde podemos vislumbrar, não apenas a complexidade da conjuntura histórica em que nasceu, mas também muitas componentes do cinema do futuro. Por alguma razão os autores da Nova Vaga, de Jean-Luc Godard a François Truffaut, viram em Renoir, não apenas um modelo estético, mas também uma referência ética.
Como seria de esperar, o lançamento de A Regra do Jogo não foi um acontecimento minimamente badalado. É um pormenor, claro, mas sintomático: quando muitos agentes sociais, do espaço televisivo à imprensa cor-de-rosa, conferem toda a evidência às telenovelas, é apenas normal que um dos maiores artistas europeus do século XX seja ignorado. Entretanto, repitam-se até ao tédio absoluto debates sobre a confiança dos portugueses no futuro…
A Regra do Jogo teve a sua estreia francesa a 8 de Julho de 1939, poucas semanas antes do evento que marca a eclosão da II Guerra Mundial (a invasão da Polónia pelas tropas alemãs, a 1 de Setembro). Não admira, por isso, que o filme tenha entrado na história do cinema também como um objecto premonitório das convulsões que iriam abalar a Europa e o mundo. Ao encenar uma galeria de personagens, senhores e criados, reunidos numa mansão, Renoir elabora uma visão do mundo em que o gosto da festa se apresenta contaminado pela partilha de um crescente desencanto existencial. Podemos, aliás, evocar algumas palavras sábias de Truffaut a propósito de outro clássico de Renoir, A Grande Ilusão (sobre a I Guerra Mundial, realizado dois anos antes): “Jean Renoir não filma directamente ideias, mas homens e mulheres que têm ideias; e não nos convida nem a adoptar nem a julgar essas ideias, sejam elas barrocas ou irrisórias, mas simplesmente a respeitá-las.”
A genial actualidade de A Regra do Jogo passa por essa arte, em que somos todos aprendizes, de lidar com a pluralidade das ideias: qualquer trabalho com as formas (narrativas) pressupõe e implica uma relação particular com a própria dinâmica social. Daí também que seja fundamental não esquecer que há em Renoir um impulso realista, paradoxalmente poético, em que o respeito pelas personagens se confunde com um delicado amor pelos actores.
E são todos admiráveis em A Regra do Jogo, incluindo Nora Gregor, Paulette Dubost, Marcel Dalio, Gaston Modot e o próprio Renoir, deixando no seu filme uma figura (Octave) que integra o prazer de viver bem e também a mágoa de os seres humanos tão mal saberem viver.”
in http://www.dn.pt/inicio/opiniao/interior.aspx?content_id=1827018&seccao=Jo%E3o%20Lopes
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“Há um filme por estrear nas salas portuguesas e que não poderá, de nenhuma forma, ter o destino de perdidas obras-primas do cinema português, filmes como Xavier (1992-2003) de Manuel Mozos ou Uma Rapariga no Verão (1986) de Vitor Gonçalves, filmes luminosos que, pelas mais diversas circunstâncias, nunca passaram pelo circuito comercial, vivendo numa espécie de lenda entre quem os conseguiu ver em posteriores reposições, ou que chegaram, como no caso de Mozos, quase uma década depois de terminados aos olhares do público português. Este filme, tão luminoso como qualquer um desses, surge como um olhar que aglomera, como poucos, os gestos de uma época, sem se restringir a uma mera representação dos seus anos (a década de 80) para se lançar, como a mais sensível das obras, para as proximidades e distâncias das relações humanas entre estados de vida, idades e gerações num país à procura do seu espírito entre o calor do Verão e um distante regresso urbano. O seu nome é Guerra Civil e o seu realizador Pedro Caldas, membro dessa mesma geração de cineastas que viu as suas carreiras atingidas pela injustificável ausência de olhar que debruçámos no seu tempo, mas que nos traz, com a sua primeira longa-metragem no início desta década, um filme que em tudo junta a profunda sensibilidade dos seus colegas cineastas e que se estende na perfeição para o nosso tempo e a nossa forma de estar no mundo, tão movida por relações e sentimentos como as suas delicadas personagens.
O nome de Guerra Civil não dirá tanto respeito ao pano de fundo histórico que se situa neste filme (a guerra do Líbano que virou as peças do Médio Oriente no Verão de 1982), mas a alienação de relações e famílias, o encontro dos corpos com a areia e o seu mar (na luz como na sua escuridão), ou o desejado encontro com uma impalpável felicidade, presente nos brilhantes momentos de expressão corporal dos seus jovens intérpretes. Aqui, surge Francisco Belard numa magnífica interpretação de contido jovem, cuja concentração também encontra os seus pontos altos em ríspidos picos de expressão verbal, física, desenhada ou dançada (um Ian Curtis brilhantemente teatral na sua dança, logo fidelíssimo em filme — será este o melhor Ian Curtis do cinema?), ou Maria Leite filmada como num conto de Rohmer, encarnação dessa ligeireza da sua estação, palco para um rosto puro e a vivência de desejos maiores, tal como para a ponte entre idealização e hesitação da sua paixão masculina (memoráveis planos em que entra e foge ao nosso olhar pelo som da sua bicicleta, ou que depois se abre ao sol que ilumina neste filme na escultural presença que a lente lhe garante).
Neste Verão ora quente, ora nublado num livre tempo de férias onde paira o seu distante espaço urbano (que tanto condiciona as suas personagens no seu presente), os destinos destes jovens corpos entregues à descoberta vêem também paralelos em maduros rostos que afagam tristezas por falhanços de vida — aqui, é Catarina Wall que encarna a maior solidão feminina, o seu falhanço e desejo de ser amada nesta casa aberta à solidão, ao regresso sempre esperado de um amor, ou à concretização de uma fuga com outro rosto, outro corpo que tanto a usa para o seu prazer como a abandona em sentimento, eterna contradição de uma condição de vida destina aos mais bonitos papéis femininos.
Aqui, surge ainda o mérito da visão de Caldas e da montagem do filme, que nos dá uma visão dividida do desenrolar do filme, equiparando sentimentos e sensações de filho e mãe, corpos distantes dessa guerra silenciosa de um lar, tão alimentada por um secreto afecto (e extraordinário uso de decisivos diálogos que nos dizem não mais do que o nosso sentido necessita) como por uma recusa de entendimento vinda do falhanço de cada um em dar seguimento aos seus sentimentos. Uma opção que garante a gravidade e o risco que os melhores filmes usam para daí depreender e espalhar a sua vida de uma inimitável personalidade.
São as relações humanas que estão em causa neste filme, defendidas, picturadas e elevadas à mais digna escala do cinema, reconhecedor de uma difícil expressão, delicado nos seus passos e no sentimento que urge mostrar no ecrã. Urgente será também este filme chegar aos nossos olhares com o mesmo respeito e espaço que pede, um gesto que estará também dependente do nosso encontro com o seu palco humano, o mais reconhecido por todas as almas que se procuram, se encontram e se perdem. Em Guerra Civil, esse encontro será imediativo, convidativo e sincero, uma relação com a matéria que filma rara na sua proximidade com o espectador, sincera no objecto da sua lente, uma obra primeira do cinema português que ganhará, na ilusão do seu movimento e na memória que o nosso olhar pede, um espaço próprio para a sua visão e homenagem.”
in http://dacasaamarela.blogspot.com/2011/04/guerra-civil-um-filme-destinado-estrear.html
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França rendida ao último filme de Manoel de Oliveira
31.03.2011 – Sérgio C. Andrade
“O filme chegou às salas francesas no dia 16 de Março
Não se trata duma novidade na longa carreira do realizador, mas não deixa de ser impressionante o acolhimento crítico que o último filme de Manoel de Oliveira, “O Estranho Caso de Angélica” (2010), está a ter em França, onde chegou às salas no dia 16 de Março, depois da antestreia mundial no Festival de Cannes.
Na contabilidade feita às apreciações críticas e às estrelas dispensadas ao filme, a revista “Premiere” mostra que metade das 14 publicações referidas (entre jornais e revistas de grande e pequena circulação) premeiam o filme com a nota máxima (quatro estrelas), e só uma delas, a “Nouvel Observateur”, lhe atribui duas estrelas. Mesmo assim, a crítica desta revista, Lucie Calet, classifica “O Estranho Caso…” como um filme “metafísico, pictural e terrivelmente comovente”, além de o comparar com os contos românticos de Théophile Gautier e de o radicar na eficácia de simplicidade artesanal de Georges Méliès.
“O Estranho Caso de Angélica”, filme com que Oliveira concretiza um argumento que escrevera nos anos 50, baseado numa vivência pessoal, recebeu também quatro estrelas do “Le Monde”, “Le Figaro” e “Libération”. “Um filme de uma beleza surpreendente, habitado por fantasmas”, escreve o crítico do primeiro, enquanto “Le Figaro” diz tratar-se de “um conto pacificamente fantástico, realizado com um refinamento poético extremo”, e o “Libé” destaca “o sortilégio de um filme hipnótico”, de onde ressalta “uma certa ideia fabulosa de cinema”. Também a revista “Les Inrockuptibles” dispensou a Oliveira a classificação máxima, vendo em “O Estranho Caso de Angélica” “um belo e rico livro de horas”, que faz pensar em Freud, e “uma fábula bizarra”, feita “com paciência” e com “um sentido da narrativa realista muito preciso e límpido”.
De fora da contabilidade feita pela “Premiere” fica a revista (concorrente) “Cahiers du Cinéma”, cuja cumplicidade com a carreira do realizador é
conhecida. “O Estranho Caso de Angélica” é eleito como “o filme do mês” de Março da revista, que diz estarmos em presença duma obra com uma “riqueza espantosa, um filme secreto, à maneira dos quadros da Renascença, recheado de pormenores que o espectador é convidado a decifrar”.
Já a própria “Premiere” (que dá três estrelas a Oliveira), através do crítico Philippe Rouyer assegura que “aqueles que receiam a estética austera do decano dos cineastas podem ficar tranquilos”. “Do cimo das suas 102 Primaveras, o sempre vivo Manoel de Oliveira consegue uma fábula sumptuosa”, num “grande filme testamentário” de “grande beleza”.
Cereja em cima deste “bolo francês”, Oliveira vai ser homenageado no Festival de Cinema de Brive, que decorre de 6 a 11 de Abril nesta pequena cidade no oeste do país. Serão exibidas nove médias e longas-metragens, de “Douro, Faina Fluvial” (1931) a “Singularidades duma Rapariga Loira” (2009). O festival quer mostrar “a actualidade” deste “autor duma das filmografias mais ricas da história do cinema”, escreve o crítico Bamchade Pourvali, a justificar a atenção que Brive decidiu dar ao realizador português (outro autor homenageado será o francês Jean Eustache).”
in http://ipsilon.publico.pt/cinema/texto.aspx?id=281352
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COMENTÁRIO
Para sermos melhores espectadores
31.03.2011 – Vasco Câmara
“O desafio do filme de Weerasethakul: confronta-nos no lugar de espectadores, lembra-nos aquilo que já fomos, nesta e noutras vidas de espectadores menos formatados
Tim Burton, e o regresso ao planeta dos macacos: “Uma das coisas que gosto deste festival [Cannes] é ver coisas que não vemos habitualmente. Vemos muitos filmes, sabem, o mundo está a ficar cada vez mais pequeno e os filmes tornam-se mais ocidentalizados ou hollywoodizados e com este filme senti que estava a ver [alguma coisa] de outro país, de outra perspectiva. Pelos temas, usando elementos de fantasia de uma forma que nunca tinha visto antes. Por isso senti que era um bonito e estranho sonho que não se vê com frequência.”
Isto era Tim Burton, citado pelo “Toronto Star”, na conferência de imprensa do Palmarés de Cannes 2010, cujo júri, que ele presidiu, atribuiu a Palma de Ouro a “O Tio Boonmee que se lembra das suas vidas anteriores”, de Apichatpong Weerasethakul. Foi daqueles palmarés em que um festival se mostra à frente, daqueles palmarés que, para além de poder fazer bem a um filme, faz bem a um festival – até porque, no caso concreto, elevou para uma fasquia de excelência uma competição que na realidade foi só sofrível – e ao cinema.
E foi um abanão – como aquele outro, em 1999, em que o júri presidido por David Cronenberg se deixou invadir pela correria de “Rosetta”, dos irmãos Dardenne, e, para cúmulo dos seus pecados, premiou os não-actores de “L’Humanité”, de Bruno Dumont, que tinha irritado muita gente e que ainda ficou com o Grande Prémio do Júri.
Para alguns a selva de Apichatpong foi uma epifania, para outros uma agressão. Aplausos entusiasmados perante o anúncio do júri (aquilo que se ouviu na sala em que a imprensa seguia a cerimónia dos prémios), entusiasmos no “Monde” ou no “Libération” (e no PÚBLICO), um “vi-o duas vezes e aborreci-me duas vezes” (“L’Express”, mas cada um aborrece-se com aquilo que pode) e um “grotesca Palma de Ouro” no “El País”, título e artigo que sintetizaram, como lhe chamar?, o medo, a intimidação, perante o desconhecido. Uma guerrilha cultural, o “mainstream” feita virgem ofendida pelo “alternativo”? O que quer que cada uma dessas categorias seja…
O último filme de Weerasethakul, “ou o que quer que essa coisa seja”, escrevia-se nesse artigo do diário espanhol, seria uma invenção dos festivais, “do ridículo gueto dos festivais”. Mas que outra coisa pode ser um festival, de cinema, de música, de teatro, de literatura, de qualquer coisa, a não ser um gueto (mais ou menos ridículo) onde – é isso que se espera – se tacteia o futuro e às vezes se encontra e outras vezes se vê miragens a cada esquina?
Acusações, ao júri, na pessoa do seu presidente, de fascínio pelo “vanguardismo”, pelo “rebuscado hermetismo” por uma “poética difícil de identificar”, pela “patética linguagem expressiva” de Weerasethakul? Sim, isso tudo. Mas a palavra que aqui interessa é “fascínio”. Ou esse é um pecado, na perspectiva de quem se descobre incapaz de aí chegar?
Não passou despercebido o facto de no ano do seu “blockbuster” “Alice no País das Maravilhas” – filme tão normalizado pelos efeitos digitais e pelo 3D… – Tim Burton ter sido seduzido pela estranheza artesanal, ele que em tempos já foi cineasta selvagem e estranho (também de “poética difícil de identificar”?). Foram-lhe feitos juízos de intenções: o americano quis fazer-se “cool” ao dar o prémio ao tailandês, o gesto terá sido calculista (até se escreveu: se ele gosta desses filmes, porque é que não os faz em Hollywood?). Preferimos esta versão, menos cínica embora subjectiva como as outras: os fantasmas (e não só a criatura felpuda saída de uma versão barata de “Star Wars”) recordaram a Tim Burton o cineasta que ele já foi, sem CGI e sem 3D. Como quem recorda vidas passadas. O Tio Burton lembrou-se das suas vidas anteriores.
Não é outro o desafio de Apichatpong Weerasethakul com este filme que faz o levantamento da memória de uma cultura específica, a do Noroeste da Tailândia, que (nos) mergulha numa floresta animista – a curta “Letter do Uncle Boonmee”, exibida o ano passado no IndieLisboa, foi um preliminar, um agitar da memória para a natureza começar a falar – mas, sobretudo, que nos confronta no lugar universal de espectadores: lembra-nos aquilo que já fomos, nesta e noutras vidas de espectadores.
É uma experiência de estados alterados “O Tio Boonmee que se lembra das suas vidas anteriores”, uma reserva de sensações, de energia e de imaginação que o espectador descobre existir (e feliz o que assim se descobre) e que o filme nele vai apurando. Numa entrevista à revista “Cinemascope”, Weerasethakul falava da diferença entre as suas instalações e os seus filmes. No primeiro caso, no espaço de uma galeria, espectador e instalação seriam como dois animais que se farejam mutuamente, o espectador estando activo; numa sala de cinema o espectador seria como um “zombie”, subjugado e hipnotizado perante o poder “extremo” do filme. Ficámos subjugados perante o que disse o senhor Weerasethakul. E ficámos subjugados perante o filme. O ecrã pode tornar-se “branco”, aberto a que projectemos nele as nossas memórias. É experiência física: um filme, uma câmara, os animais e a natureza permitindo esta sensação de estar sujeito à transformação.
Coisa de “pureza”? Nada disso, como pode ser “puro” o cinema de um arquitecto de formação, tailandês, que estudou cinema em Chicago e que cita Antonioni, Jacques Tourneur, o cinema de ficção científica ou os subprodutos da TV tailandesa?
Coisa “primitiva”? Sim, no sentido – nada elitista, já agora – do cinema como espectáculo que nos deixa boquiabertos de espanto. Como já estivemos. Como já fomos, espectadores menos formatados.
Na verdade, isto é cinema em 3D. Mas neste caso, para o ver, é preciso tirar os óculos.”
in http://ipsilon.publico.pt/cinema/texto.aspx?id=281357
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Estreia
Quinze Pontos na Alma
* Quinze Pontos na Alma
* De: Vicente Alves do Ó
* Com: Dalila Carmo, Rita Loureiro, João Reis, Marcello Urgeghe, Carmen Santos
* Género: Drama
* Classificacao: M/12
“Há um equívoco a trabalhar na primeira longa-metragem do argumentista Vicente Alves do Ó: a de que o amor do cinema – e, sobretudo, o amor do cinema clássico – é, só por si, suficiente para transportar um filme. “Quinze Pontos na Alma” é um filme assombrado pelos grandes retratos de mulher que o cinema americano da era de ouro soube mostrar, pelas obsessões vertiginosas que arrastaram actrizes como Joan Crawford, Bette Davis ou Barbara Stanwyck, realizadores como Douglas Sirk ou Alfred Hitchcock.
Não são poucos, aliás, os momentos em que Rita Loureiro invoca abertamente as “louras” de Hitchcock, de Grace Kelly a Tippi Hedren passando por Kim Novak. E é de propósito, porque Alves do Ó quer fazer uma espécie de “Vertigo” luso, obsessivo e malsão, sobre uma mulher com uma vida perfeita que se deixa arrastar pelo beijo que deu a um suicida no viaduto Duarte Pacheco.
Mas esse fascínio quase fetichista pelo cinema clássico (vejam-se os cartazes de filmes, as citações constantes nos décors e nos diálogos, o guarda-roupa) esbarra na incapacidade de Alves do Ó imprimir personalidade, direcção ou sentido ao seu filme. O irrealismo escapista dos cenários e personagens, que se quer invocação dos décors de Cedric Gibbons ou Hal Pereira, raramente se eleva acima do pechisbeque de ricos de telenovela.
O desejo de grandiloquência melodramática em memória de Cinemascope afoga-se numa série de planos gratuitamente vistosos, o que se quer glamour retro resume-se a fotografia cristalina de anúncio publicitário ou teledisco limpinho. O cuidado posto no diálogo deliberadamente barroco é destruído por uma direcção de actores aproximativa que nunca consegue um tom unificador nem a estilização procurada.
O que sai daqui é um filme que, à imagem da sua personagem, quer ser algo que não aquilo que realmente é – em vez de “Vertigo” temos um ersatz de “Odete”. Que há aqui sinceridade e paixão não se duvida. Mas isso não chega.”
in http://ipsilon.publico.pt/cinema/filme.aspx?id=279690
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Estreia
Holy Santa Maria Fuck!
* A Espada e a Rosa
* De: João Nicolau
* Com: Manuel Mesquita, Luís Lima Barreto, Nuno Pino Custódio, Pedro Faro, Joana Cunha Ferreira, Hugo Leitão, Mariana Ricardo
* Género: Drama, Comédia
* Classificacao: M/12
“Sonho, amor, arte, ciência, literatura, música, tecnologia, café e rum num filme de Verão sobre o fim do Verão, destinado a dividir opiniões
Ou muito nos enganamos, ou “A Espada e a Rosa” vai dividir as opiniões, ainda mais do que é habitual no cinema português. Estamos mesmo a ver uns quantos puristas a cobrir de opróbrio o primeiro filme de João Nicolau, pela sua aparência de “filme de amigos” com uma sensibilidade demasiado “restrita” para ser abrangente, e outros tantos a reverem-se na “boa onda” de um filme que não se parece com mais nada que o cinema português tenha feito nos últimos anos. Com mais nada, isto é, à excepção de “A Cara que Mereces”, de Miguel Gomes – o que ainda mais dividirá as opiniões.
A Espada é o símbolo de uma substância primordial capaz de tudo e mais alguma coisa. A Rosa é um pirata reformado, misantropo e com mau feitio, que se desmultiplica entre Michael Biberstein, Luís Miguel Cintra e José Mário Branco. O Manel vive de biscates, evita O Fiscal, tem um gato chamado Maradona e abandona tudo para ir para alto mar com os Piratas do Plutex, que navegam numa caravela chamada Vera Cruz. Há canções, aventuras, piadas privadas, empregadas brasileiras, francesas petulantes, traições, cinema mudo, engenhocas e alemães com helicópteros. “Holy Santa Maria fuck!”, dizem eles e dizemos nós.
“A Espada e a Rosa” é isto tudo sem ser nada disto, metáfora de uma utopia, de uma religião, de uma revolução, pelos olhos de um manel qualquer que vai atrás dos sonhos. Sonho, amor, arte, ciência, literatura, música, tecnologia, café e rum. É filme de “turma”, de amigos a brincarem ao cinema e aos piratas e à ficção científica, mas sem que essa brincadeira seja privada ou exclusiva. Seja bem-vindo quem vier por bem; “A Espada e a Rosa” é um convite a quem quiser fazê-lo a vir brincar ao cinema, e aos piratas, com João Nicolau. E é difícil resistir à bonomia e à alegria que o filme comunica, mesmo que por trás dessa bonomia haja algo de melancólico e triste: é um filme de Verão sobre o fim do Verão, sobre o momento em que temos de deixar de perseguir os sonhos para encarar a realidade.
O ADN de “A Espada e a Rosa” está inextricavelmente ligado ao de “A Cara que Mereces”: mesma equipa de produção, mesma estrutura de filme de turma inspirado por histórias clássicas (ali a “Branca de Neve”, aqui o filme de piratas), mesma inserção de humor absurdo e interlúdios musicais (a cargo de Mariana Ricardo, ex-Pinhead Society e actual München, que colaborou em ambos os filmes). E, sobretudo, uma ambiência quase lírica, meio romântica, uma vontade deliberada de baralhar as regras convencionais da narrativa.
Mas onde Gomes é um cineasta do plano longo, Nicolau é um homem da câmara formalista, em movimento trabalhado; onde em Gomes há sempre uma noção de aleatório, de acaso aproveitado, tudo aqui é pensado, trabalhado, deliberado ao milímetro – e o acaso tudo menos acidental. Talvez por isso, “A Espada e a Rosa” estruturado em três actos que mergulham progressivamente num onirismo cada vez mais surreal até se atingir um ponto de não-retorno, respira mais espontaneidade (paradoxalmente) e mais liberdade, é mais lúdico e acessível.
E, mesmo longe de ser um filme perfeito ou um grande filme (excepto nas suas duas horas e vinte) é uma das mais extraordinárias estreias que temos visto no cinema português recente.”
in http://ipsilon.publico.pt/cinema/filme.aspx?id=268456
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